sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Ensaio sobre a cegueira eclesiástica


Ensaio sobre a cegueira eclesiástica

 


Carlos Eduardo Calvani
Quem está falando? perguntou o médico. “Um cego”, respondeu a voz, “só um cego, é o que temos aqui.”  (José Saramago em Ensaio sobre a Cegueira)

José Saramago construiu em seu livro Ensaio sobre a Cegueira, uma das metáforas mais fortes sobre a condição espiritual da humanidade. A cegueira descrita por Saramago, brota do narcisismo humano, do egoísmo ou como ele mesmo descreve em seu livro: “fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro. Porque cada um só tem olhos para si e para o que é seu, estamos todos condenados à cegueira”. É uma cegueira que nasce de nossa incapacidade de enxergar o outro, de cuidar do outro e de ver apenas nossos próprios interesses.

“Ensaio sobre a cegueira” é uma excelente ficção. A cegueira começa em um único homem. Enquanto espera a mudança do semáforo, este homem tem um ataque repentino de cegueira, as pessoas que correm em seu socorro se contaminam e uma cadeia sucessiva de cegueira se alastra. Ninguém sabe como a cegueira começou. Não há culpados; não há causas nem motivos. Apenas a cegueira que se apossa repentinamente de todos e ninguém pode fazer nada para detê-la.

O governo decide agir para conter a epidemia e aprisiona as pessoas infectadas em uma quarentena com recursos limitados e é exatamente durante esse período que irão se desvendar aos poucos as características mais primitivas do ser humano, especialmente a luta pelo poder, a insensibilidade, a ganância, o desejo, a brutalidade e a violência. Durante o confinamento, grupos opostos de cegos se formam e somente uma mulher é capaz de enxergar, mas ela nada pode fazer, exceto lutar pela própria sobrevivência e proteger as pessoas mais vulneráveis. Ela mesma não sabe porque não foi contaminada e nem sabe quando tudo voltará ao normal, ou mesmo se algum dia a ordem se reestabelecerá. Enquanto isso a cegueira se dissemina por toda a sociedade e nem mesmo as autoridades são poupadas. O caos se instala e a cegueira física faz aflorar o que há de pior no ser humano.

O mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou. Agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos”

Quem não tiver paciência para ler o livro, poderá acompanhar o filme adaptado por Fernando Meirelles e que foi muito elogiado por Saramago. A espiral da violência dos cegos atinge a todos. Não há mais ordem na sociedade; não há mais leis, exceto a doscegos mais fortes. Ao final, um pequeno grupo consegue se refugiar em uma casa abandonada e ali começam a reconstruir um mínimo possível de convivência civilizada. Tomam banho e, mesmo cegos, limpam a casa, preparam refeições e conversam, acostumando-se à condição de cegos. Apenas vivem em comunidade, condenados à sua cegueira. Até que um dia, sem aviso prévio, sem qualquer anúncio, as pessoas começam a enxergar novamente. Não se sabe como ou porquê. Apenas terminou o tempo da cegueira e os olhos começam a ver novamente a luz.

Saramago era ateu. De fato, em sua obra, não há qualquer menção de que uma intervenção sobrenatural tenha feito as pessoas voltarem a enxergar. Apenas era preciso viver o tempo da cegueira. Era um tempo necessário. Era um tempo de amadurecimento e de voltar-se para dentro de si. Mas nada era possível fazer durante aquele tempo, exceto acostumar-se à cegueira, reconhecer-se cego e adaptar-se à vida cega sem qualquer certeza ou esperança de que um dia os olhos pudessem voltar a enxergar.

A metáfora de Saramago pode ser aplicada à atual crise eclesiástica que vivemos e que, partindo da DASP, acirrou os ânimos de pessoas em vários lugares do Brasil. Não sabemos como começou (certamente o Concílio extraordinário não foi o início) nem de quem é a culpa. Talvez nem seja possível dizer que começou na DASP. Talvez tenha começado em outros círculos. Também não sabemos com quem começou, e como diria Victor Hugo, “não há inocentes ou culpados; somos todos miseráveis”. Confinados à quarentena, grupos se formam e o caos impera. Mas é impossível deter a cegueira. Ela atinge também as autoridades e se prolifera. Estamos condenados à cegueira.

Em meio a isso tudo eu também estou cego. Isso não significa que não tenha minhas opiniões particulares e já manifestei minha tristeza e indignação com o processo judicial que impediu a sagração do bispo-eleito. Mas reconheço que não consigo vislumbrar todas as implicações e, na condição de cego, apenas sinto o cheiro de sapos enterrados. Mas se não vejo luzes, que dirá sombras? De modo algum comparo-me à mulher-que-enxergava na obra de Saramago. Ela, ao menos, conseguia ajudar e proteger os cegos mais fracos. Eu, quanto mais ouço, mais sinto-me como “cego-em-tiroteio”. Palavras são ditas e des-ditas. Decisões são anunciadas e depois tudo volta à estaca-zero. Ninguém se entende, e parece que quanto mais falamos, mais cegueira disseminamos (inclusive eu). Condenados à cegueira, apenas isso… estamos vivendo o tempo da cegueira. Há culpados e inocentes? Não! Somos todos miseráveis,  condenados à cegueira…

Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso? Sempre estivemos cegos, Cegos que mesmo vendo, não viam

A obra de Saramago, embora ácida e cruel, pode nos ensinar algumas coisas:

a) é preciso viver esse tempo de cegueira. Talvez Deus esteja permitindo que andemos “como cegos caminhando e apalpando o muro e tateando, como quem não tem olhos” (Isaías) para que sejamos mais humildes e aprendamos que todos precisamos uns dos outros, que ninguém é auto-suficiente e que, num mundo em que todos estão  cegos, todos precisam se ajudar.

b) Não é possível afirmar quando a cegueira passará; pode demorar dias ou anos. Apenas temos que aprender a conviver com a cegueira e criar comunidades de apoio dispostas a conviver civilizadamente; do contrário, não haverá futuro.

c) um dia, não se sabe quando, talvez voltemos a enxergar e extrairemos lições preciosas do tempo da cegueira. Enquanto isso, acostumemo-nos a ela, e tentemos nos adaptar à nossa triste condição de cegos.

Provavelmente tenhamos que ser, durante um tempo, uma Igreja de cegos; porém, o simples fato de reconhecer humildemente nossa condição, talvez já seja o primeiro passo para a cura e o reestabelecimento da visão.

Os caminhos da divina providência são misteriosos demais. Em tempos de Natal e Epifania, proclamamos que Cristo é a luz do mundo, mas nós mesmos, sentimo-nos cegos, e enquanto estivermos cegos, não há muito o que fazer, além de entoar o hino 228 (Vem Jesus, ó luz do mundo, vem dissipa as ilusões… tira o véu dos nossos olhos, ilumina os corações…) e continuar a repetir as palavras da Oração Eucarística A: “abre, ó Senhor, os nossos olhos para que vejamos a tua mão agindo no mundo que nos cerca”.

Quem está falando? perguntou o médico. “Um cego”, respondeu a voz, “só um cego, é o que temos aqui.” 

Campo Grande, 15 de janeiro de 2013 – em tempos de Epifania