Ensaio sobre a cegueira eclesiástica
Carlos Eduardo Calvani
Quem está falando? perguntou o médico. “Um cego”, respondeu a voz, “só um
cego, é o que temos aqui.” (José Saramago em Ensaio sobre a
Cegueira)
José Saramago construiu em seu livro Ensaio
sobre a Cegueira, uma das metáforas mais fortes sobre a condição espiritual
da humanidade. A cegueira descrita por Saramago, brota do narcisismo humano, do
egoísmo ou como ele mesmo descreve em seu livro: “fizemos dos olhos uma
espécie de espelhos virados para dentro. Porque cada um só tem olhos para si e
para o que é seu, estamos todos condenados à cegueira”. É uma cegueira que
nasce de nossa incapacidade de enxergar o outro, de cuidar do outro e de ver
apenas nossos próprios interesses.
“Ensaio sobre a cegueira” é uma excelente ficção.
A cegueira começa em um único homem. Enquanto espera a mudança do semáforo, este
homem tem um ataque repentino de cegueira, as pessoas que correm em seu socorro
se contaminam e uma cadeia sucessiva de cegueira se alastra. Ninguém sabe como a
cegueira começou. Não há culpados; não há causas nem motivos. Apenas a cegueira
que se apossa repentinamente de todos e ninguém pode fazer nada para
detê-la.
O governo decide agir para conter a epidemia e
aprisiona as pessoas infectadas em uma quarentena com recursos limitados e é
exatamente durante esse período que irão se desvendar aos poucos as
características mais primitivas do ser humano, especialmente a luta pelo poder,
a insensibilidade, a ganância, o desejo, a brutalidade e a violência. Durante o
confinamento, grupos opostos de cegos se formam e somente uma mulher é capaz de
enxergar, mas ela nada pode fazer, exceto lutar pela própria sobrevivência e
proteger as pessoas mais vulneráveis. Ela mesma não sabe porque não foi
contaminada e nem sabe quando tudo voltará ao normal, ou mesmo se algum dia a
ordem se reestabelecerá. Enquanto isso a cegueira se dissemina por toda a
sociedade e nem mesmo as autoridades são poupadas. O caos se instala e a
cegueira física faz aflorar o que há de pior no ser humano.
“O mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos
acabou. Agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos”
Quem não tiver paciência para ler o livro, poderá
acompanhar o filme adaptado por Fernando Meirelles e que foi muito elogiado por
Saramago. A espiral da violência dos cegos atinge a todos. Não há mais ordem na
sociedade; não há mais leis, exceto a doscegos mais fortes. Ao final, um pequeno
grupo consegue se refugiar em uma casa abandonada e ali começam a reconstruir um
mínimo possível de convivência civilizada. Tomam banho e, mesmo cegos, limpam a
casa, preparam refeições e conversam, acostumando-se à condição de cegos. Apenas
vivem em comunidade, condenados à sua cegueira. Até que um dia, sem aviso
prévio, sem qualquer anúncio, as pessoas começam a enxergar novamente. Não se
sabe como ou porquê. Apenas terminou o tempo da cegueira e os olhos começam a
ver novamente a luz.
Saramago era ateu. De fato, em sua obra, não há
qualquer menção de que uma intervenção sobrenatural tenha feito as pessoas
voltarem a enxergar. Apenas era preciso viver o tempo da cegueira. Era um tempo
necessário. Era um tempo de amadurecimento e de voltar-se para dentro de si. Mas
nada era possível fazer durante aquele tempo, exceto acostumar-se à cegueira,
reconhecer-se cego e adaptar-se à vida cega sem qualquer certeza ou esperança de
que um dia os olhos pudessem voltar a enxergar.
A metáfora de Saramago pode ser aplicada à atual
crise eclesiástica que vivemos e que, partindo da DASP, acirrou os ânimos de
pessoas em vários lugares do Brasil. Não sabemos como começou (certamente o
Concílio extraordinário não foi o início) nem de quem é a culpa. Talvez nem seja
possível dizer que começou na DASP. Talvez tenha começado em outros círculos.
Também não sabemos com quem começou, e como diria Victor Hugo, “não há inocentes
ou culpados; somos todos miseráveis”. Confinados à quarentena, grupos se formam
e o caos impera. Mas é impossível deter a cegueira. Ela atinge também as
autoridades e se prolifera. Estamos condenados à cegueira.
Em meio a isso tudo eu também estou cego. Isso
não significa que não tenha minhas opiniões particulares e já manifestei minha
tristeza e indignação com o processo judicial que impediu a sagração do
bispo-eleito. Mas reconheço que não consigo vislumbrar todas as implicações e,
na condição de cego, apenas sinto o cheiro de sapos enterrados. Mas se não vejo
luzes, que dirá sombras? De modo algum comparo-me à mulher-que-enxergava na obra
de Saramago. Ela, ao menos, conseguia ajudar e proteger os cegos mais fracos.
Eu, quanto mais ouço, mais sinto-me como “cego-em-tiroteio”. Palavras são ditas
e des-ditas. Decisões são anunciadas e depois tudo volta à estaca-zero. Ninguém
se entende, e parece que quanto mais falamos, mais cegueira disseminamos
(inclusive eu). Condenados à cegueira, apenas isso… estamos vivendo o tempo da
cegueira. Há culpados e inocentes? Não! Somos todos miseráveis, condenados à
cegueira…
“Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um
dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso? Sempre
estivemos cegos, Cegos que mesmo vendo, não viam”
a) é preciso viver esse tempo de cegueira. Talvez
Deus esteja permitindo que andemos “como cegos caminhando e apalpando o muro e
tateando, como quem não tem olhos” (Isaías) para que sejamos mais humildes e
aprendamos que todos precisamos uns dos outros, que ninguém é auto-suficiente e
que, num mundo em que todos estão cegos, todos precisam se ajudar.
b) Não é possível afirmar quando a cegueira
passará; pode demorar dias ou anos. Apenas temos que aprender a conviver com a
cegueira e criar comunidades de apoio dispostas a conviver civilizadamente; do
contrário, não haverá futuro.
Provavelmente tenhamos que ser, durante um tempo,
uma Igreja de cegos; porém, o simples fato de reconhecer humildemente nossa
condição, talvez já seja o primeiro passo para a cura e o reestabelecimento da
visão.
Os caminhos da divina providência são misteriosos
demais. Em tempos de Natal e Epifania, proclamamos que Cristo é a luz do mundo,
mas nós mesmos, sentimo-nos cegos, e enquanto estivermos cegos, não há muito o
que fazer, além de entoar o hino 228 (Vem Jesus, ó luz do mundo, vem dissipa
as ilusões… tira o véu dos nossos olhos, ilumina os corações…) e continuar
a repetir as palavras da Oração Eucarística A: “abre, ó Senhor, os nossos olhos
para que vejamos a tua mão agindo no mundo que nos cerca”.
Quem está falando? perguntou o médico. “Um
cego”, respondeu a voz, “só um cego, é o que temos aqui.”