Instituição e movimentos no dinamismo da Igreja
Carlos Eduardo Calvani
Os
debates que antecedem o 32º. Sínodo da IEAB tem sido bastante
proveitosos. Os Indabas levantaram várias questões e o relatório final
tentou contemplar todas as vozes e opiniões presentes. Dentre as muitas
vozes, emergiu a solicitação para que o Sínodo discutisse um
posicionamento oficial da IEAB sobre o matrimônio igualitário.
Não
se pode negar que essa preocupação faça parte de muitos setores e
regiões da Igreja. Se fosse algo pontual e isolado, não acirraria tanta
troca de opiniões nas redes sociais e em diferentes sites e blogs. O
site “Palavra Aberta” tem divulgado textos sobre o assunto e o Movimento Episcopaz, por sua vez, promoverá um debate às vésperas do Sínodo, aberto a todas as pessoas interessadas, com o tema: “Matrimônio Igualitário – desafio ou evolução do conceito para a Igreja?”
No
início deste ano (2013) o Curso de Verão promovido anualmente pelo
CESEP debateu a importância das redes sociais para os movimentos
populares e, por conseqüência também, para os movimentos de renovação da
Igreja. O curso contou com a participação de várias lideranças e
constatou que, de fato, as novas redes sociais como o facebook são
extremamente importantes para os movimentos por seu dinamismo.
No
calor da discussão é compreensível que certos posicionamentos sejam
defendidos com ardor e convicção. Nos últimos dias, identifiquei no
facebook algumas frases que, aparentemente, referem-se a esse debate. A
primeira reclamava ser “uma
tentativa de imposição de uma elite que lidera em nome do povo, como
que a determinar o que e’ melhor para ele mesmo contra a vontade desse
mesmo povo”. A segunda, dizia que “neste
momento na vida da IEAB, (…) uma minoria tenta impor sobre a Igreja
posições que dividem e não respeitam o senso comum dos fiéis”.
Estamos no centro de uma velha discussão que envolve o dinamismo entre Instituição e Movimentos.
Nem sempre conseguimos vislumbrar em meio a uma situação dessa
natureza, os contornos históricos dessa relação. Mas se perdermos essa
memória correremos o risco de tratar os Movimentos como rebeldia,
insubordinação, anarquismo, etc, sem perceber o grande valor deles em
nossa vida institucional.
Ninguém
nega o valor e a importância das instituições. Elas servem, entre
outras coisas, para trazer ordem ao dinamismo social e para preservar a
memória da resolução de problemas do passado. Se não existisse uma
instituição com sua ordem, a memória se perderia na subjetividade e cada
novo problema seria enfrentado sem a experiência acumulada do passado.
Mas instituições, por sua própria natureza, são incapazes de produzir
movimentos. Instituições estão comprometidas com a preservação de uma
ordem e, muito raramente as instituições tomam iniciativas de mudança.
Quando isso acontece, não nos iludamos – acontece porque movimentos
provocaram essas mudanças. Instituições são espelho e reflexo de nós
mesmos que escrevemos sua constituição e cânones e as eventuais
alterações nesse aparato jurídico apenas sinalizam mudanças em nós
mesmos.
Os
Movimentos, por sua vez, não têm caráter institucional, ao menos em um
primeiro momento. Posteriormente, alguns podem se institucionalizar.
Alguns permanecem como movimentos e outros ainda se auto-extinguem
porque não nasceram com o propósito de se perpetuar historicamente.
Movimentos surgem espontaneamente, com poucas pessoas, e nesse sentido,
sempre são inicialmente uma voz de minorias, sim. Mas são vozes que
verbalizam inquietações e demandas que incomodam grupos que fazem parte
de um corpo institucional ou de um tecido social. Geralmente movimentos
não surgem com a intenção de dividir ou causar rupturas. Surgem apenas
por desejo e necessidade de que certas demandas sejam contempladas e
certos direitos sejam respeitados e garantidos.
Na
sociedade civil são muitos os movimentos em curso que aglutinam pessoas
em torno de ideais, e todos são necessários no processo social. É por
isso que valorizamos, por exemplo, o estudo histórico do movimento abolicionista ou os movimentos artísticos de vanguarda;
durante o regime militar no Brasil, a multifacetada oposição (com todas
as suas divergências internas) teve que necessariamente aglutinar-se no
Movimento Democrático Brasileiro,
transformado em partido – MDB. Nos anos 70 e 80 surgiram tantos e
tantos outros movimentos sociais e com os quais, vez ou outra nos
identificamos. Muitos de nós militamos em “Movimento estudantil” ou em “Movimento Sindical” ou ainda o MST (Movimento Sem-terra). Alguns
se institucionalizaram e se subdividiram de acordo com ideologias e
objetivos próprios. Hoje existem o Movimento ecológico, o Movimento
LGBT, e muitos outros.
Os
Movimentos são importantes porque é deles que surge a renovação, ou
alguém imagina que o próprio INSS tomaria alguma iniciativa para
garantir correção nas aposentadorias, não fosse a atuação do “Movimento dos aposentados”?.
Alguém esperaria que os latifundiários, INCRA ou FUNAI tomassem
iniciativas em prol da Reforma Agrária ou dos direitos indígenas não
fosse a atuação dos movimentos correspondentes a esses direitos?
Na
tradição judaico-cristã os movimentos também são muitos importantes.
Estamos acostumados, sempre que fazemos estudos bíblicos ou de história
da Igreja, a depararmo-nos com termos que apontam a importância dos
movimentos na tradição judaico-cristã. Falamos, por exemplo, do “Movimento Profético” ou do próprio “Movimento de Jesus”
(aliás, título de um famoso livro de Gerd Theissen muito apreciado
entre os biblistas). Gostamos de lembrar que a Igreja Primitiva foi um
“movimento” antes de ser uma instituição, e quando começamos a falar
sobre a história da Igreja, saltam aos olhos a quantidade de movimentos:
- Movimento monástico
(surgido espontânea e naturalmente como contraponto de espiritualidade
ao processo de institucionalização da Igreja pós-constantiniana) e que,
por sua vez, herdava algumas reivindicações do Movimento montanista
(século II); as ordens religiosas que surgiram no decorrer da história
da Igreja geralmente nasciam como “movimentos” em torno de ideais de
espiritualidade, sendo mais tarde “institucionalizadas”. É por isso que
em alguns setores da história da Igreja ainda se usam as expressões “movimento franciscano”, “movimento beneditino”, etc…
- Movimentos reformadores –
Embora Lutero tenha se caracterizado como líder, ele apenas dava
continuidade a uma “memória de movimentos” anteriores desde os lolardos,
John Huss, Wycliff, etc. Os movimentos reformadores não eram
necessariamente coesos, mas foram importantes, a ponto de provocarem uma
reforma interna na própria Igreja Romana.
- Na tradição anglicana estamos acostumados aos termos “Movimento Puritano”, “Movimento Metodista” e “Movimento de Oxford”.
O primeiro não foi capaz de quebrar a estrutura como desejava; o
segundo contribuiu bastante com a renovação da Igreja e mais tarde
separou-se desenvolvendo-se em um corpo institucional próprio; o
terceiro nunca pretendeu quebrar estruturas, mas renová-las, e o fez
utilizando estratégias semelhantes as que usamos atualmente na internet e
nas redes sociais. O “Movimento de Oxford”
publicou pequenos tratados – “Tracts”, como foram conhecidos na época, e
que fez seus líderes serem conhecidos também como “tractarianos”
(diga-se de passagem, no início do século XX, o Movimento Fundamentalista também utilizou as redes sociais da época para a publicação dos pequenos folhetos “The Fundamentals”). No século XIX o movimento do Socialismo Cristão causou ira e revolta na acomodada aristocracia britânica, inclusive muitos “bispos-lordes”.
- No âmbito ecumênico, o próprio CMI (que, aliás, não é proprietário do “Movimento Ecumênico”) surgiu da aglutinação de outros diferentes “movimentos” – o “Movimento Missionário”, o “Movimento Vida e Ação” e o “Movimento Fé e Ordem”. Todos
esses movimentos reuniam pessoas que não estavam necessariamente em
guerra umas com as outras, mas apenas reunidas em torno de ideais que as
cativavam e muitas lideranças participavam simultaneamente dos três
movimentos. O Movimento Evangelical, por sua vez, sempre contou com a colaboração de episcopais e anglicanos.
- Nos anos 80, entre algumas Igrejas Protestantes do Brasil alguns músicos começaram a falar em “Movimento Momento Novo”
(servindo-se do título de uma canção ainda muito entoada em nossas
Paróquias e que preconizava a renovação musical através do resgate de
ritmos brasileiros) ou “Louvor Brasileiro”. Esses movimentos,
necessariamente não se institucionalizaram, mas deixaram marcas
significativas e que não podem ser esquecidas.
- Os que conhecem a história da IEAB já leram sobre o “movimento cerimonialista”
que trouxe ao Brasil algumas das ênfases do “Movimento de Oxford” e do
anglocatolicismo. Nos anos 70 vivemos também a febre do “Movimento carismático”, que despertou muitas pessoas para cargos de liderança e outras para o ministério ordenado.
Uma característica de muitos desses movimentos é a atuação e o protagonismo do laicato.
Embora recebam apoio de alguns bispos e clérigos que mais tarde são
sagrados ao episcopado, na dinâmica dos movimentos, as ordens religiosas
não importam muito. Afinal, são movimentos “em torno de algo pelo qual
se luta” e não movimentos em torno da preservação de algo que já se tem.
Para isso, a instituição é suficiente. E é bom e salutar que a
liderança seja exercida pelo laicato.
Faz algum tempo que temos ouvido a expressão “empoderamento dos leigos”
e algumas vezes a instituição estimula isso; em outras ocasiões, teme e
tenta inibir os movimentos silenciando pessoas. Mas o silenciamento só
dá resultado parcial, pois algumas pessoas (especialmente clérigos)
ainda que não se manifestem publicamente, continuarão a colaborar com os
movimentos. Movimentos são incontroláveis; são fluídos e escorregam
pelos dedos da instituição e seu tempo de duração não depende dos
humores institucionais, mas simplesmente do dinamismo social.
Há muitos movimentos nas Igrejas da Comunhão Anglicana.
Alguns conseguiram se institucionalizar, tal como o Encontro dos
Primazes que surgiu inicialmente do interesse (e necessidade) de fazer
com que os Primazes se reunissem de tempos em tempos para oração,
convivência e troca de experiências. O movimento se institucionalizou e
hoje é uma das “Estruturas da Comunhão Anglicana”. Se um dia houver
condições históricas e políticas favoráveis, nada impedirá que surja um
“Encontro dos líderes leigos” de cada Igreja da Comunhão (diferente do
ACC) e que pode também ser elevado à categoria institucional de
“estrutura de comunhão”. Atualmente temos o GAFCON, que reúne uma determinada linha da Igreja que exclui a IEAB. Na TEC existe o Movimento Integrity (http://www.integrityusa.org/
) e quem acompanha a vida religiosa e política das Igrejas Protestantes
dos Estados Unidos conhece bem movimentos tão opostos como o “Tea Party” ou “Cristianismo Progressista” (TCPC) – site: http://www.integrityusa.org/
Não
há por que temer os movimentos. Eles não têm necessariamente interesse
em perpetuar-se institucionalmente. Não é esse o seu objetivo, embora
até possam criar uma rede permanente de vigilância para garantir a
continuidade da luta e ou a certeza de que direitos adquiridos sejam
respeitados.
Aqui no Brasil, nos últimos anos, no âmbito da IEAB
temos sido agraciados com dois movimentos que surgiram tal como surge
qualquer movimento – não por iniciativa institucional, mas como
expressão de compromisso e interesse de lideranças leigas e clericais.
No auge da crise que abateu a DASP, um grupo de pessoas fieis e comprometidas com a DASP e a IEAB criou o site “Palavra Aberta”,
sem solicitar autorização institucional ou recursos financeiros. Essas
pessoas dedicam seu tempo e recursos financeiros para manutenção de um
site de notícias extremamente importante para a vida da Igreja,
sobretudo após a extinção do jornal “Estandarte Cristão”. O Palavra Aberta
é hoje importante fonte de consulta na IEAB para notícias, eventos e
textos e é melhor que permaneça como um movimento de livre iniciativa
porque desse modo a instituição não tem como controlá-lo. Afinal,
jornais como “Estandarte Cristão” – ou qualquer outro órgão
institucional – sempre funcionam como uma espécie de “Diário Oficial”:
existem para divulgar notícias institucionais, atas, resoluções, etc,
mas dificilmente abrem-se à auto-crítica ou a uma coluna tipo
“ombudsman”. Movimentos como o “Palavra Aberta”
tem a vantagem de, além de publicar notícias, também divulgar textos
que talvez sejam do interesse de alguns (quem não estiver interessado
não precisa ler) e até seções de humor e charges. Diga-se de passagem, a
Comunhão Anglicana tem seus sites oficiais; porém, as notícias
realmente mais atuais aparecem muito antes no conhecido site “anglicans
online” (http://anglicansonline.org ) e não nos sites oficiais, tal como acontece no “Palavra Aberta”.
Outro movimento extremamente importante na vida da IEAB hoje é o “Episcopaz” (Anglicanos pró-diversidade e pela paz (procure a comunidade no facebook “Movimento Episcopaz”). Nascido da iniciativa leiga, herdou de certo modo algumas ênfases do Movimento “De volta para a Igreja”
(que aliás, quando houve interesse institucional, a Secretaria Geral
passou a estimular o “Domingo de volta para a Igreja”), embora também
carregue o viés de aproximação social com minorias e agentes dos
direitos humanos. Episcopaz
também não pretende ser uma instituição. Sua liderança pode mudar; sua
abrangência pode aumentar atraindo leigos e clérigos de várias regiões
do Brasil tal como tem acontecido atualmente. No bojo de seus
princípios, segundo sua liderança já anunciou por diversas vezes, vem
ampliando seu compromisso em defesa dos postos à margem (sem-teto, “sem
dignidade”, sem educação de qualidade, sem saúde básica, etc), criando
pontes com diversos setores da sociedade civil e da própria igreja,
estimulando a inclusão como um todo, e não apenas na área da diversidade
sexual.
Parece-me
bastante óbvio que todos, em princípio, concordam que a Igreja,
essencialmente, não é uma instituição, mas a divina comunhão dos santos.
A instituição é o nosso ordenamento e muitas mudanças conseguidas nesse
ordenamento aconteceram em virtude dos movimentos que as provocaram.
Por isso, instituições e movimentos não estão necessariamente em luta e
em campos opostos, mas são complementares. Sem os movimentos, as
instituições se petrificam. Por sua vez, sem a memória e a tradição
preservada institucionalmente, os movimentos se tornam arroubos de
revolta sem referenciais claros. O mistério da Igreja envolve esse
dinamismo – nascida de um movimento interno nas instituições judaicas,
redescobriu no Cristo ressuscitado, o plano original da Criação, oculto
nas mazelas institucionais da Lei e sempre se renova e se reforma na
compreensão de que “A lei mata, mas o Espírito vivifica”.