sábado, 9 de novembro de 2013

Instituição e movimentos no dinamismo da Igreja

Instituição e movimentos no dinamismo da Igreja



Carlos Eduardo Calvani

Os debates que antecedem o 32º. Sínodo da IEAB tem sido bastante proveitosos. Os Indabas levantaram várias questões e o relatório final tentou contemplar todas as vozes e opiniões presentes. Dentre as muitas vozes, emergiu a solicitação para que o Sínodo discutisse um posicionamento oficial da IEAB sobre o matrimônio igualitário.

Não se pode negar que essa preocupação faça parte de muitos setores e regiões da Igreja. Se fosse algo pontual e isolado, não acirraria tanta troca de opiniões nas redes sociais e em diferentes sites e blogs. O site “Palavra Aberta” tem divulgado textos sobre o assunto e o Movimento Episcopaz, por sua vez, promoverá um debate às vésperas do Sínodo, aberto a todas as pessoas interessadas, com o tema: “Matrimônio Igualitário – desafio ou evolução do conceito para a Igreja?”

No início deste ano (2013) o Curso de Verão promovido anualmente pelo CESEP debateu a importância das redes sociais para os movimentos populares e, por conseqüência também, para os movimentos de renovação da Igreja. O curso contou com a participação de várias lideranças e constatou que, de fato, as novas redes sociais como o facebook são extremamente importantes para os movimentos por seu dinamismo.

No calor da discussão é compreensível que certos posicionamentos sejam defendidos com ardor e convicção. Nos últimos dias, identifiquei no facebook algumas frases que, aparentemente, referem-se a esse debate. A primeira reclamava ser “uma tentativa de imposição de uma elite que lidera em nome do povo, como que a determinar o que e’ melhor para ele mesmo contra a vontade desse mesmo povo”. A segunda, dizia que “neste momento na vida da IEAB, (…) uma minoria tenta impor sobre a Igreja posições que dividem e não respeitam o senso comum dos fiéis”. 

          Estamos no centro de uma velha discussão que envolve o dinamismo entre Instituição e Movimentos. Nem sempre conseguimos vislumbrar em meio a uma situação dessa natureza, os contornos históricos dessa relação. Mas se perdermos essa memória correremos o risco de tratar os Movimentos como rebeldia, insubordinação, anarquismo, etc, sem perceber o grande valor deles em nossa vida institucional.

Ninguém nega o valor e a importância das instituições. Elas servem, entre outras coisas, para trazer ordem ao dinamismo social e para preservar a memória da resolução de problemas do passado. Se não existisse uma instituição com sua ordem, a memória se perderia na subjetividade e cada novo problema seria enfrentado sem a experiência acumulada do passado. Mas instituições, por sua própria natureza, são incapazes de produzir movimentos. Instituições estão comprometidas com a preservação de uma ordem e, muito raramente as instituições tomam iniciativas de mudança. Quando isso acontece, não nos iludamos – acontece porque movimentos provocaram essas mudanças. Instituições são espelho e reflexo de nós mesmos que escrevemos sua constituição e cânones e as eventuais alterações nesse aparato jurídico apenas sinalizam mudanças em nós mesmos.

Os Movimentos, por sua vez, não têm caráter institucional, ao menos em um primeiro momento. Posteriormente, alguns podem se institucionalizar. Alguns permanecem como movimentos e outros ainda se auto-extinguem porque não nasceram com o propósito de se perpetuar historicamente. Movimentos surgem espontaneamente, com poucas pessoas, e nesse sentido, sempre são inicialmente uma voz de minorias, sim. Mas são vozes que verbalizam inquietações e demandas que incomodam grupos que fazem parte de um corpo institucional ou de um tecido social. Geralmente movimentos não surgem com a intenção de dividir ou causar rupturas. Surgem apenas por desejo e necessidade de que certas demandas sejam contempladas e certos direitos sejam respeitados e garantidos.

Na sociedade civil são muitos os movimentos em curso que aglutinam pessoas em torno de ideais, e todos são necessários no processo social. É por isso que valorizamos, por exemplo, o estudo histórico do movimento abolicionista ou os movimentos artísticos de vanguarda; durante o regime militar no Brasil, a multifacetada oposição (com todas as suas divergências internas) teve que necessariamente aglutinar-se no Movimento Democrático Brasileiro, transformado em partido – MDB. Nos anos 70 e 80 surgiram tantos e tantos outros movimentos sociais e com os quais, vez ou outra nos identificamos. Muitos de nós militamos em “Movimento estudantil” ou em “Movimento Sindical” ou ainda o MST (Movimento Sem-terra). Alguns se institucionalizaram e se subdividiram de acordo com ideologias e objetivos próprios. Hoje existem o Movimento ecológico, o Movimento LGBT, e muitos outros.

Os Movimentos são importantes porque é deles que surge a renovação, ou alguém imagina que o próprio INSS tomaria alguma iniciativa para garantir correção nas aposentadorias, não fosse a atuação do “Movimento dos aposentados”?. Alguém esperaria que os latifundiários, INCRA ou FUNAI tomassem iniciativas em prol da Reforma Agrária ou dos direitos indígenas não fosse a atuação dos movimentos correspondentes a esses direitos?

         Na tradição judaico-cristã os movimentos também são muitos importantes. Estamos acostumados, sempre que fazemos estudos bíblicos ou de história da Igreja, a depararmo-nos com termos que apontam a importância dos movimentos na tradição judaico-cristã. Falamos, por exemplo, do “Movimento Profético” ou do próprio “Movimento de Jesus” (aliás, título de um famoso livro de Gerd Theissen muito apreciado entre os biblistas). Gostamos de lembrar que a Igreja Primitiva foi um “movimento” antes de ser uma instituição, e quando começamos a falar sobre a história da Igreja, saltam aos olhos a quantidade de movimentos:

- Movimento monástico (surgido espontânea e naturalmente como contraponto de espiritualidade ao processo de institucionalização da Igreja pós-constantiniana) e que, por sua vez, herdava algumas reivindicações do Movimento montanista (século II); as ordens religiosas que surgiram no decorrer da história da Igreja geralmente nasciam como “movimentos” em torno de ideais de espiritualidade, sendo mais tarde “institucionalizadas”. É por isso que em alguns setores da história da Igreja ainda se usam as expressões “movimento franciscano”, “movimento beneditino”, etc…

- Movimentos reformadores – Embora Lutero tenha se caracterizado como líder, ele apenas dava continuidade a uma “memória de movimentos” anteriores desde os lolardos, John Huss, Wycliff, etc. Os movimentos reformadores não eram necessariamente coesos, mas foram importantes, a ponto de provocarem uma reforma interna na própria Igreja Romana.

- Na tradição anglicana estamos acostumados aos termos “Movimento Puritano”, “Movimento Metodista” e “Movimento de Oxford”. O primeiro não foi capaz de quebrar a estrutura como desejava; o segundo contribuiu bastante com a renovação da Igreja e mais tarde separou-se desenvolvendo-se em um corpo institucional próprio; o terceiro nunca pretendeu quebrar estruturas, mas renová-las, e o fez utilizando estratégias semelhantes as que usamos atualmente na internet e nas redes sociais. O “Movimento de Oxford” publicou pequenos tratados – “Tracts”, como foram conhecidos na época, e que fez seus líderes serem conhecidos também como “tractarianos” (diga-se de passagem, no início do século XX, o Movimento Fundamentalista também utilizou as redes sociais da época para a publicação dos pequenos folhetos “The Fundamentals”). No século XIX o movimento do Socialismo Cristão causou ira e revolta na acomodada aristocracia britânica, inclusive muitos “bispos-lordes”. 

- No âmbito ecumênico, o próprio CMI (que, aliás, não é proprietário do “Movimento Ecumênico”) surgiu da aglutinação de outros diferentes “movimentos” – o “Movimento Missionário”, o “Movimento Vida e Ação” e o “Movimento Fé e Ordem”. Todos esses movimentos reuniam pessoas que não estavam necessariamente em guerra umas com as outras, mas apenas reunidas em torno de ideais que as cativavam e muitas lideranças participavam simultaneamente dos três movimentos. O Movimento Evangelical, por sua vez, sempre contou com a colaboração de episcopais e anglicanos.
 
- Nos anos 80, entre algumas Igrejas Protestantes do Brasil alguns músicos começaram a falar em “Movimento Momento Novo” (servindo-se do título de uma canção ainda muito entoada em nossas Paróquias e que preconizava a renovação musical através do resgate de ritmos brasileiros) ou “Louvor Brasileiro”. Esses movimentos, necessariamente não se institucionalizaram, mas deixaram marcas significativas e que não podem ser esquecidas.
 
- Os que conhecem a história da IEAB já leram sobre o “movimento cerimonialista” que trouxe ao Brasil algumas das ênfases do “Movimento de Oxford” e do anglocatolicismo. Nos anos 70 vivemos também a febre do “Movimento carismático”, que despertou muitas pessoas para cargos de liderança e outras para o ministério ordenado. 

            Uma característica de muitos desses movimentos é a atuação e o protagonismo do laicato. Embora recebam apoio de alguns bispos e clérigos que mais tarde são sagrados ao episcopado, na dinâmica dos movimentos, as ordens religiosas não importam muito. Afinal, são movimentos “em torno de algo pelo qual se luta” e não movimentos em torno da preservação de algo que já se tem. Para isso, a instituição é suficiente. E é bom e salutar que a liderança seja exercida pelo laicato. 

Faz algum tempo que temos ouvido a expressão “empoderamento dos leigos” e algumas vezes a instituição estimula isso; em outras ocasiões, teme e tenta inibir os movimentos silenciando pessoas. Mas o silenciamento só dá resultado parcial, pois algumas pessoas (especialmente clérigos) ainda que não se manifestem publicamente, continuarão a colaborar com os movimentos. Movimentos são incontroláveis; são fluídos e escorregam pelos dedos da instituição e seu tempo de duração não depende dos humores institucionais, mas simplesmente do dinamismo social.

Há muitos movimentos nas Igrejas da Comunhão Anglicana. Alguns conseguiram se institucionalizar, tal como o Encontro dos Primazes que surgiu inicialmente do interesse (e necessidade) de fazer com que os Primazes se reunissem de tempos em tempos para oração, convivência e troca de experiências. O movimento se institucionalizou e hoje é uma das “Estruturas da Comunhão Anglicana”. Se um dia houver condições históricas e políticas favoráveis, nada impedirá que surja um “Encontro dos líderes leigos” de cada Igreja da Comunhão (diferente do ACC) e que pode também ser elevado à categoria institucional de “estrutura de comunhão”. Atualmente temos o GAFCON, que reúne uma determinada linha da Igreja que exclui a IEAB. Na TEC existe o Movimento Integrity (http://www.integrityusa.org/ ) e quem acompanha a vida religiosa e política das Igrejas Protestantes dos Estados Unidos conhece bem movimentos tão opostos como o “Tea Party” ou “Cristianismo Progressista” (TCPC) – site: http://www.integrityusa.org/

Não há por que temer os movimentos. Eles não têm necessariamente interesse em perpetuar-se institucionalmente. Não é esse o seu objetivo, embora até possam criar uma rede permanente de vigilância para garantir a continuidade da luta e ou a certeza de que direitos adquiridos sejam respeitados.

Aqui no Brasil, nos últimos anos, no âmbito da IEAB temos sido agraciados com dois movimentos que surgiram tal como surge qualquer movimento – não por iniciativa institucional, mas como expressão de compromisso e interesse de lideranças leigas e clericais. 

No auge da crise que abateu a DASP, um grupo de pessoas fieis e comprometidas com a DASP e a IEAB criou o site “Palavra Aberta”, sem solicitar autorização institucional ou recursos financeiros. Essas pessoas dedicam seu tempo e recursos financeiros para manutenção de um site de notícias extremamente importante para a vida da Igreja, sobretudo após a extinção do jornal “Estandarte Cristão”. O Palavra Aberta é hoje importante fonte de consulta na IEAB para notícias, eventos e textos e é melhor que permaneça como um movimento de livre iniciativa porque desse modo a instituição não tem como controlá-lo. Afinal, jornais como “Estandarte Cristão” – ou qualquer outro órgão institucional – sempre funcionam como uma espécie de “Diário Oficial”: existem para divulgar notícias institucionais, atas, resoluções, etc, mas dificilmente abrem-se à auto-crítica ou a uma coluna tipo “ombudsman”. Movimentos como o “Palavra Aberta” tem a vantagem de, além de publicar notícias, também divulgar textos que talvez sejam do interesse de alguns (quem não estiver interessado não precisa ler) e até seções de humor e charges. Diga-se de passagem, a Comunhão Anglicana tem seus sites oficiais; porém, as notícias realmente mais atuais aparecem muito antes no conhecido site “anglicans online” (http://anglicansonline.org ) e não nos sites oficiais, tal como acontece no “Palavra Aberta”. 

Outro movimento extremamente importante na vida da IEAB hoje é o “Episcopaz” (Anglicanos pró-diversidade e pela paz (procure a comunidade no facebook “Movimento Episcopaz”).  Nascido da iniciativa leiga, herdou de certo modo algumas ênfases do Movimento “De volta para a Igreja” (que aliás, quando houve interesse institucional, a Secretaria Geral passou a estimular o “Domingo de volta para a Igreja”), embora também carregue o viés de aproximação social com minorias e agentes dos direitos humanos. Episcopaz também não pretende ser uma instituição. Sua liderança pode mudar; sua abrangência pode aumentar atraindo leigos e clérigos de várias regiões do Brasil tal como tem acontecido atualmente. No bojo de seus princípios, segundo sua liderança já anunciou por diversas vezes, vem ampliando seu compromisso em defesa dos postos à margem (sem-teto, “sem dignidade”, sem educação de qualidade, sem saúde básica, etc), criando pontes com diversos setores da sociedade civil e da própria igreja, estimulando a inclusão como um todo, e não apenas na área da diversidade sexual.

Parece-me bastante óbvio que todos, em princípio, concordam que a Igreja, essencialmente, não é uma instituição, mas a divina comunhão dos santos. A instituição é o nosso ordenamento e muitas mudanças conseguidas nesse ordenamento aconteceram em virtude dos movimentos que as provocaram. Por isso, instituições e movimentos não estão necessariamente em luta e em campos opostos, mas são complementares. Sem os movimentos, as instituições se petrificam. Por sua vez, sem a memória e a tradição preservada institucionalmente, os movimentos se tornam arroubos de revolta sem referenciais claros. O mistério da Igreja envolve esse dinamismo – nascida de um movimento interno nas instituições judaicas, redescobriu no Cristo ressuscitado, o plano original da Criação, oculto nas mazelas institucionais da Lei e sempre se renova e se reforma na compreensão de que “A lei mata, mas o Espírito vivifica”.

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